Hoje eu acordei com vontade de escrever

Tuesday, August 29, 2006

Pequenas histórias de amor

Ele a acordou com um beijo. Ela abriu os olhos sorrindo.

- Bom dia.
- Bom dia.
- Por que você sempre acorda sorrindo?
- Eu sempre acordo sorrindo?
- Ahã.
- Deve ser porque é você que me acorda.

********

Estavam entre família e amigos. Ele anunciou.

- Eu queria fazer um comunicado. Gostaria de dizer que eu descobri que eu gosto de chocolate.

Ela atravessou a sala correndo, se jogou nos braços dele e disse:

- Agora você é perfeito!

********

Tinham brigado aquela manhã. Aliás andavam brigando a toda hora. Estavam no carro com outro casal de amigos quando o assunto “separação” apareceu. Nada de sério. Apenas um “O que você faria se acabassem se separando?”

Ele tira uma das mãos do volante para segurar com força a dela.

Ele: A gente não vai se separar nunca.
Ela: Sei lá... Não dá para saber.
Ele: Eu sei.
Ela: Como é que você sabe?
Ele: Eu sei.

********

Eles foram casados por 42 anos. Tiveram três filhos. Dois netos. Não falavam muito, mas ainda davam as mãos sempre que elas estivessem perto. Ela faleceu de câncer. Três meses depois ele morreu. De nada. Só morreu.

********

Era a terceira vez que saíam. Não tinham trocado nada além de muita conversa e alguns beijos. Subiram até a casa dele. Não demorou muito até começarem a tirar suas roupas. Ela a blusa dele. Ele a blusa dela. Parou para olhar seus seios. Soube naquele instante o quanto ainda seria louco por ela.

********

Nunca tinham falado assim. Mas saiu como se tivessem ensaiado muitas e muitas vezes.

- Eu te amo.
- Mais que ontem.
- Menos que amanhã.

E assim foi.

Thursday, August 17, 2006

Nostalgia

Quando era mais nova, minha mãe tocava violão. Ela tinha dois cadernos com as cifras e letras favoritas e passávamos madrugadas acordadas, ela tocando e a gente cantando. Só mãe mesmo para conseguir me ouvir cantar noite adentro. Nessa mesma época tínhamos um Chevette, sem rádio, e cantávamos sem a companhia do violão no engarrafamento para sair da Barra da Tijuca. Só mãe mesmo para me ouvir cantar à capela, ainda por cima no engarrafamento.

Uma destas músicas era Disparada. Prepare o seu coração pras coisas que eu vou contar, eu venho lá do sertão, eu venho lá do sertão, e posso não lhe agradar. Para quem não conhece, é uma daquelas músicas difíceis de cantar porque toda hora você se confunde, canta a estrofe errada e, quando vê, voltou para o começo de novo. Esse era o nosso desafio: cantar até o fim sem errar. E foi nesse contexto que essa música angustiada sobre um boiadeiro que aprendeu a dizer não e ver a morte sem chorar marcou a minha vida.

Disparada foi composta por Geraldo Vandré e empatou em primeiro lugar com A Banda no Festival da TV Record de 66, na voz de Jair Rodrigues. Mas ao contrário da música mais conhecida do Chico, nunca havia escutado Disparada de outra maneira que não no violão da minha mãe e cantada por nós.

Assim foi por uns 10 anos até eu descobrir que Disparada abria o CD O Grande Encontro 2, que reúne Elba Ramalho, Geraldo Azevedo e Zé Ramalho. Comprei correndo o CD, cheguei em casa e coloquei para tocar. Alguns acordes depois desembestei num choro profundo como poucos. Olha que eu sou rodada em choros. Mas esse tinha alguma coisa de especial. Não era de tristeza, nem de alegria. Era por ter sido transportada de volta no tempo e não poder ficar lá mais do que uma fracção de segundo. Era por momentos de intimidade entre mãe e filha que por nada nesse mundo poderiam voltar. Eu ainda estou aqui. Minha mãe, graças a Deus, também. O violão fica encostado na parede e os cadernos estão guardados em algum lugar. Mas Disparada não era mais uma música que só existia para nós, na nossa casa ou num carrinho velho.

O tempo é orgulhoso. Se tem alguma coisa que ele não faz é voltar atrás.

Friday, August 11, 2006

Minha pequena homenagem à gula

Quem nunca fez um furo numa lata de leite condensado, faça. Quem nunca misturou Oreo com morango, fandangos com brigadeiro, macarrão com queijo e pêra, misture. Quem nunca leu O Clube dos Anjos (Gula) do Luís Fernando Veríssimo, leia. Quem não assistiu Como Água para Chocolate, assista. Quem nunca comeu a picanha do Braseiro não sabe a saudade que eu sinto. Quem nunca provou batatas fritas com queijo ralado não conhece a Lia. Quem sai de casa sem tomar café da manhã, é melhor mudar os hábitos. Pular refeições faz mal e engorda. Quem não fica em dúvida na frente do cardápio de um restaurante bom não me entende. Quem não fica triste porque não aguenta a sobremesa me entende menos ainda. Quem assiste Mesa pra Dois e não tem vontade de levar o Alex Atala pra jantar só pode ser homem. Quem não tentou gostar de sushi pelo menos cinco vezes, tente de novo. Vale a pena. Quem nunca experimentou sorvete de guaraná ou rosca rosa não é da minha família. Quem nunca comeu pato em Paris, sorvete na Itália, sauerkraut na Alemanha, bode em Pernambuco ou o cachorro quente da Universal Studios, viaje. Quem nunca voltou na geladeira para pegar mais um pedaço de pudim não é uma pessoa confiável. Quem não sai da dieta tem um parafuso a menos. Ou dois. Quem nunca gastou mais do que devia num jantar, abra a carteira. Quem gasta mais do que devia em restaurantes toda hora, pare. Comer bem não custa caro. Quem não tem uma comida que faz com que se sinta melhor, é uma pena. Quem não pensa besteira quando vê uma Nhá Benta não sabe o que está perdendo. Quem nunca comeu o miojo do meu marido às 4 da manhã, pode tirar o cavalinho da chuva. Quem não tem muito prazer em comer, esquece.

Tuesday, August 08, 2006

Amador

Amador. Segunda definição do Dicionário Aurélio. Adjetivo. Diz-se daquele que se dedica a uma arte ou ofício por prazer. Nós.

Aqui no palco somos todos amadores. Até mesmo os profissionais. Fazemos música e dança por amor. Por instinto. Porque quando nos encontramos com o Flamenco, ele já fazia parte de nós. Sem nenhuma razão. E como tudo que nos toma nessa vida, sem muita explicação.

Tocar flamenco é hipnotizar os sentidos e envolver a alma com ritmos fortes, complexos, marcados. Cantar flamenco é emitir sons e dizer mais do que palavras. Dançar flamenco é fazer música com os pés e poesia com as mãos.

Na arte flamenca nenhuma emoção é excluída. Celebra-se a alegria em um Tango, mas também a tristeza em um Chientos e, porque não, o desespero em uma Sigerija. Através do flamenco, comemoramos a paixão e extravasamos o ódio. Ou vice-versa.

Flamenco é acima de tudo sentimento. E como sentimentos são sempre mais intensos quando compartilhados, sejam bem-vindos. Temos certeza que, em breve, na platéia também serão todos amadores.

Amador. Sexta definição do Dicionário Aurélio. Substantivo masculino. Entusiasta. Apreciador. Vocês.

Como escreveu Clarice Lispector sobre o Flamenco, “Não era espetáculo, não se assistia: quem ouvia era tão essencial como quem batia os pés em silêncio.”


Obs.: Esse texto é antigo e foi gravado para abrir um espetáculo de Flamenco que fizemos em 2002.

O outro lado

Júlia desceu o elevador carregando Clara no colo. Ainda não tinham encontrado uma casa para morar e estavam hospedados no hotel que a empresa do marido pagara. Um bom hotel. O marido mais uma vez trabalhava até tarde, apesar de ter prometido chegar a tempo de dar o jantar à Clara. Coitado, andava trabalhando tanto. Mas não podia mais esperar. Clara já estava ficando com sono.

Chegou ao restaurante do hotel e não precisou falar nada. O garçom abriu um sorriso para Clara e perguntou:
- Uma sopa de legumes?

Júlia sorriu gentilmente, fazendo com a cabeça que sim. O garçom se foi enquanto ela se recostava numa poltrona de couro e Júlia brincava com um ursinho de plástico. Ergueu os olhos e lá estava ela. A hóspede que desce com um livro e pede um drink rosado num copo de martini para beber sozinha. Ficava encantada com a beleza daquele líquido naquele copo. Beber sozinha no bar de um hotel enquanto lê um bom livro era uma coisa Júlia nunca tinha feito. Tinha 23 anos quando a Clara nascera. Havia muita coisa que não tinha feito. A sopa chegou. Pegou um pouco da lateral, onde estaria menos quente, e soprou.

Adorava seu marido e sua filha, mas naqueles dias à hora do jantar, enquanto fazia aviãozinho com uma colher para a bebê mais linda do mundo, não conseguia deixar de sentir inveja daquela ausência de dependência. Uma mulher que se bastava e sozinha estava muito bem acompanhada. Não era propriamente bonita, mas tinha uma certa elegância natural e aparentava ser bem-sucedida, não só pelas roupas caras e o cabelo bem cuidado. Exalava confiança. Era bem-sucedida com certeza. Podia fazer o que quisesse, a hora que bem entendesse.

Tentou se imaginar com aquele copo na mão. Poderia se apresentar, pedir um drink também e saber mais sobre a mulher misteriosa. Não tinha muito o que fazer até seu marido chegar. Mas seu devaneio foi interrompido por um respingo de sopa que voou no seu rosto. Pensou nos seus cabelos presos de qualquer jeito para trás e nos chinelos que trazia nos pés, enquanto limpava o resto de sopa morna da testa com um guardanapo. Uma mulher ocupada demais para uma mãe que não tem feito muito mais do que trocar fraldas. Fez graça para a filha que a olhava de lado com medo de levar uma bronca. Derreteu-se com aquela visão. Pegou-a no colo fazendo cócegas com a boca no seu pescoço e subiu para fazê-la dormir. Antes do elevador chegar, ainda olhou mais uma vez a mulher do livro e do drink. Lá estava ela, totalmente alheia à sua presença no restaurante.


*******


Andrea estava no seu segundo Cosmopolitan e no sexto capítulo do novo romance quando a mãe chegou com a bebê. Nas últimas noites, quando descia para o bar na tentativa de não se sentir tão sozinha no quarto, aquela jovem mãe descia para dar o jantar à sua filha. Não parecia ter mais do que 25 anos. Era linda, com os olhos claros e os cabelos lisos, bonitos mesmo presos para trás sem o menor cuidado. A criança não parecia com ela. Tinha uma beleza diferente. Devia ter puxado o pai.

Não era uma mulher de ter inveja. E nem sabia se era inveja ou melancolia o que sentia quando a via chegar. Quando criança não sonhara em ser uma mulher divorciada e sem filhos com um bom trabalho e algum dinheiro. Não tinham sido estes os planos que fizera para ela. Mas foi assim que aconteceu. E na verdade era feliz em grande parte do tempo. Quantas pessoas podem dizer isso a respeito de si mesmas? Pensou como teria sido se tivesse tido um filho com o Jorge. Pesou se teriam superado a crise que acabou o casamento se um filho estivesse em jogo. Provavelmente não. Mas seus pensamentos foram interrompidos por aquela cena. A bebê agitou a colher e um bocado de sopa acertou a testa da mãe. Teve vontade de rir. Desviou o olhar para o livro. Deu mais um gole no seu drink.

Tinha 30 e poucos anos. Ainda havia tempo para encontrar alguém com quem pudesse (e quisesse) ter um filho. Será? Quando viu a mãe fazer cócegas na filha com uma intimidade que não conseguia imaginar, teve vontade de se apresentar. Poderia dizer “Olá, eu sou Andrea. Sempre te vejo aqui no restaurante. Sua filha é linda.” Esquece. Mulheres com filhos são ocupadas demais para mulheres sem filhos. Todas tem aquele ar de que já cumpriram a sua missão no mundo: dar continuidade à humanidade. Devia ter muito o que fazer para conversar com uma estranha no bar. Seria melhor voltar para o livro. Um bom livro e um belo drink. Ficaria bem. De qualquer forma, mãe e filha já iam embora, totalmente alheias à sua presença no bar.

Tuesday, August 01, 2006

Saudade

Foi bom ter a casa só pra mim de novo. Escrevi umas besteiras no computador. Morri de chorar vendo Walk the Line no DVD. Tomei água do gargalo. Fui no banheiro com a porta aberta. Dormi sem roupa.

Mas essa sensação já, já passa. Fica a saudade. Saudade de ter por perto uma amiga como poucas, daquelas que a gente ri junto sem motivo nenhum. Saudade da cara de safado do meu afilhado, dos beijos babados e de como a cada dia ele dizia melhor o meu nome. (Foi no último dia que senti ele mais próximo, fazendo “brrrr” na minha barriga e se divertindo com o fato de realmente me fazer sentir cócegas). Saudade de como nossos maridos se dão bem e de que como com vocês por perto tudo parece tão casa, tão confortável. Saudades que não passam nem com mil skypes, como ela escreveu no bilhetinho escondido que deixou na caixa dos meus óculos.

Têm sido dias difíceis. A morte da minha avó mexeu muito comigo. A gente se afasta de quem gosta, se acostuma com a distância e quando descobre que nunca vai poder dizer o quanto essa pessoa é importante, sente que perdeu muito tempo precioso fazendo coisas tão irrelevantes quanto ler as notícias no Blue Bus ou reclamar da vida.

Minha avó foi uma avó no melhor sentido da palavra. O queijo quente sem casca cortado em quatro, a música que ela fez pra mim (Aline, Aline, Aline Macarrão), os nossos jogos de buraco (foi minha avó quem me iniciou no vício de jogar cartas), o leite de colônia que ela passava no meu rosto e me deixava impressionada com quanta sujeira ficava no algodão (aquilo era como passar álcool na pele!), as embalagens vazias que ela guardava para eu brincar, os bonequinhos com ímã que se beijavam quando chegassem perto. Pensar na Vó Laurita é como dar corda numa caixa de música que toca as lembranças mais gostosas da minha infância.

E eu, estúpida, nunca disse isso a ela. Nunca disse que mesmo no Rio, já adulta, pensava que se ela estivesse perto ia passar na padaria para comprar pão quente e depois ir lá para lanchar. E eu, estúpida, vim morar em Lisboa sem encontrar tempo para ir a Brasília me despedir. E eu, estúpida, liguei pouco, escrevi pouco, falei pouco. Podem dizer que não, mas tenho certeza que minha avó se foi sem ter idéia de tudo o que significou para mim e de quanta saudade deixou. Só me resta acreditar que agora ela esteja em algum lugar onde possa se ver pelos meus olhos. Ela se veria com imenso carinho.

Ao que parece, assim como na música da Amália Rodrigues, “a minha canção é saudade”. Menos mal que só sentimos saudades de coisas boas. Hoje, especialmente, de uma amiga espetacular e de uma avó maravilhosa.

Termino com um beijo para as duas.