Nostalgia
Quando era mais nova, minha mãe tocava violão. Ela tinha dois cadernos com as cifras e letras favoritas e passávamos madrugadas acordadas, ela tocando e a gente cantando. Só mãe mesmo para conseguir me ouvir cantar noite adentro. Nessa mesma época tínhamos um Chevette, sem rádio, e cantávamos sem a companhia do violão no engarrafamento para sair da Barra da Tijuca. Só mãe mesmo para me ouvir cantar à capela, ainda por cima no engarrafamento.
Uma destas músicas era Disparada. Prepare o seu coração pras coisas que eu vou contar, eu venho lá do sertão, eu venho lá do sertão, e posso não lhe agradar. Para quem não conhece, é uma daquelas músicas difíceis de cantar porque toda hora você se confunde, canta a estrofe errada e, quando vê, voltou para o começo de novo. Esse era o nosso desafio: cantar até o fim sem errar. E foi nesse contexto que essa música angustiada sobre um boiadeiro que aprendeu a dizer não e ver a morte sem chorar marcou a minha vida.
Disparada foi composta por Geraldo Vandré e empatou em primeiro lugar com A Banda no Festival da TV Record de 66, na voz de Jair Rodrigues. Mas ao contrário da música mais conhecida do Chico, nunca havia escutado Disparada de outra maneira que não no violão da minha mãe e cantada por nós.
Assim foi por uns 10 anos até eu descobrir que Disparada abria o CD O Grande Encontro 2, que reúne Elba Ramalho, Geraldo Azevedo e Zé Ramalho. Comprei correndo o CD, cheguei em casa e coloquei para tocar. Alguns acordes depois desembestei num choro profundo como poucos. Olha que eu sou rodada em choros. Mas esse tinha alguma coisa de especial. Não era de tristeza, nem de alegria. Era por ter sido transportada de volta no tempo e não poder ficar lá mais do que uma fracção de segundo. Era por momentos de intimidade entre mãe e filha que por nada nesse mundo poderiam voltar. Eu ainda estou aqui. Minha mãe, graças a Deus, também. O violão fica encostado na parede e os cadernos estão guardados em algum lugar. Mas Disparada não era mais uma música que só existia para nós, na nossa casa ou num carrinho velho.
O tempo é orgulhoso. Se tem alguma coisa que ele não faz é voltar atrás.
3 Comments:
Ah, Boneca! Você sabe me emocionar... E também dizer coisas da maneira mais simples e direta - direto ao coração. Que saudade de você!!!
Boneca... Eu ja tou a mais de meia hora pensando em alguma coisa legal pra escrever aqui no teu blog e não consigo! É difícil expressar no papel como a gente sente as coisas, realmente vc tem algo de especial aí dentro. Esse talento pra levar quem lê a viajar dessa maneira é para poucos. Parabéns. Escreve! Escreve bastante! A gente agradece.
Beijos,
Luiz
"Boneca",
Apesar de não nos conhecermos pessoalmente, parece que muito te conheço. Ouço várias travessuras de sua infância, de um modo tão apaixonante, que somente uma pessoa que realmente viveu e talvez ainda viva intensamente cada pedacinho de cada hitória, poderia relatar com tanta riqueza de detalhes. Sua mãe. Ahh... o que dizer sobre a sua mãe? Sua mãe é simplesmente o máximo. Por vezes parece uma personagem animada que vive entre galáxias. Parabéns pelos seus textos e parabéns pela mãe que Deus te deu.
Beijos. Jorge Barroso.
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