Hoje eu acordei com vontade de escrever

Tuesday, August 08, 2006

O outro lado

Júlia desceu o elevador carregando Clara no colo. Ainda não tinham encontrado uma casa para morar e estavam hospedados no hotel que a empresa do marido pagara. Um bom hotel. O marido mais uma vez trabalhava até tarde, apesar de ter prometido chegar a tempo de dar o jantar à Clara. Coitado, andava trabalhando tanto. Mas não podia mais esperar. Clara já estava ficando com sono.

Chegou ao restaurante do hotel e não precisou falar nada. O garçom abriu um sorriso para Clara e perguntou:
- Uma sopa de legumes?

Júlia sorriu gentilmente, fazendo com a cabeça que sim. O garçom se foi enquanto ela se recostava numa poltrona de couro e Júlia brincava com um ursinho de plástico. Ergueu os olhos e lá estava ela. A hóspede que desce com um livro e pede um drink rosado num copo de martini para beber sozinha. Ficava encantada com a beleza daquele líquido naquele copo. Beber sozinha no bar de um hotel enquanto lê um bom livro era uma coisa Júlia nunca tinha feito. Tinha 23 anos quando a Clara nascera. Havia muita coisa que não tinha feito. A sopa chegou. Pegou um pouco da lateral, onde estaria menos quente, e soprou.

Adorava seu marido e sua filha, mas naqueles dias à hora do jantar, enquanto fazia aviãozinho com uma colher para a bebê mais linda do mundo, não conseguia deixar de sentir inveja daquela ausência de dependência. Uma mulher que se bastava e sozinha estava muito bem acompanhada. Não era propriamente bonita, mas tinha uma certa elegância natural e aparentava ser bem-sucedida, não só pelas roupas caras e o cabelo bem cuidado. Exalava confiança. Era bem-sucedida com certeza. Podia fazer o que quisesse, a hora que bem entendesse.

Tentou se imaginar com aquele copo na mão. Poderia se apresentar, pedir um drink também e saber mais sobre a mulher misteriosa. Não tinha muito o que fazer até seu marido chegar. Mas seu devaneio foi interrompido por um respingo de sopa que voou no seu rosto. Pensou nos seus cabelos presos de qualquer jeito para trás e nos chinelos que trazia nos pés, enquanto limpava o resto de sopa morna da testa com um guardanapo. Uma mulher ocupada demais para uma mãe que não tem feito muito mais do que trocar fraldas. Fez graça para a filha que a olhava de lado com medo de levar uma bronca. Derreteu-se com aquela visão. Pegou-a no colo fazendo cócegas com a boca no seu pescoço e subiu para fazê-la dormir. Antes do elevador chegar, ainda olhou mais uma vez a mulher do livro e do drink. Lá estava ela, totalmente alheia à sua presença no restaurante.


*******


Andrea estava no seu segundo Cosmopolitan e no sexto capítulo do novo romance quando a mãe chegou com a bebê. Nas últimas noites, quando descia para o bar na tentativa de não se sentir tão sozinha no quarto, aquela jovem mãe descia para dar o jantar à sua filha. Não parecia ter mais do que 25 anos. Era linda, com os olhos claros e os cabelos lisos, bonitos mesmo presos para trás sem o menor cuidado. A criança não parecia com ela. Tinha uma beleza diferente. Devia ter puxado o pai.

Não era uma mulher de ter inveja. E nem sabia se era inveja ou melancolia o que sentia quando a via chegar. Quando criança não sonhara em ser uma mulher divorciada e sem filhos com um bom trabalho e algum dinheiro. Não tinham sido estes os planos que fizera para ela. Mas foi assim que aconteceu. E na verdade era feliz em grande parte do tempo. Quantas pessoas podem dizer isso a respeito de si mesmas? Pensou como teria sido se tivesse tido um filho com o Jorge. Pesou se teriam superado a crise que acabou o casamento se um filho estivesse em jogo. Provavelmente não. Mas seus pensamentos foram interrompidos por aquela cena. A bebê agitou a colher e um bocado de sopa acertou a testa da mãe. Teve vontade de rir. Desviou o olhar para o livro. Deu mais um gole no seu drink.

Tinha 30 e poucos anos. Ainda havia tempo para encontrar alguém com quem pudesse (e quisesse) ter um filho. Será? Quando viu a mãe fazer cócegas na filha com uma intimidade que não conseguia imaginar, teve vontade de se apresentar. Poderia dizer “Olá, eu sou Andrea. Sempre te vejo aqui no restaurante. Sua filha é linda.” Esquece. Mulheres com filhos são ocupadas demais para mulheres sem filhos. Todas tem aquele ar de que já cumpriram a sua missão no mundo: dar continuidade à humanidade. Devia ter muito o que fazer para conversar com uma estranha no bar. Seria melhor voltar para o livro. Um bom livro e um belo drink. Ficaria bem. De qualquer forma, mãe e filha já iam embora, totalmente alheias à sua presença no bar.

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