Água
Nunca quiseram que ficássemos juntos. Nunca. Desde o momento em que me viram. Velho, gordo. Quer dizer, velho para ela. Gordo para ela. Juro que entendo. Também não gostaria que a minha filha – semi-virgem, recém-adulta – aparecesse em casa com um comedor de putas. Confesso, tenho cara de comedor de putas. Também tenho cara de funcionário. Uma aparência de quem não é, nem nunca será dono de nada. Eu compreendo o ressentimento daqueles pais. Bons pais de boa filha.
Tenho certeza de que sempre que me vêem, sempre que eu passo lá para buscá-la, que dou boa noite, eles imaginam a gente trepando. Eu em cima dela. Ela de quatro, gostando. Só isso explica a expressão que eles fazem. O nojo da mãe. A inveja do pai. Inveja de eu poder dar a ela o único tipo de amor que ele não pode. Logo eu, um funcionário comedor de putas. Fico com pena.
Uma vez, ela me disse que sente os olhares, as recriminações como água. Jatos de água sempre no mesmo ponto, até machucar. Água que aparentemente só molha. Pais que aparentemente só amam. Os dois podem torturar. Tão nova e diz uma coisa destas. Tão linda e diz uma coisa destas.
Foram-se uns meses e nada tinha passado de olhares e silêncios. Até então era um ódio cortês. Um ódio de classe média bem educada. Neste dia, quando ela entrou na sala, de vestidinho verde solto no corpo, sandálias altas e batom que brilha, eu sorri. Um sorriso não pensado, um sorriso que sorriu. E ofendeu aqueles pais como um tapa na cara. Eu não apenas trepava com ela. Eu estava apaixonado por ela.
- Eu preferia que ele não colocasse mais os pés nesta casa, disse a mãe que quase nunca falava.
- Água, disse ela.
Eu lhe falei de um lugar onde nos sentiríamos no deserto. Sua gratidão me confortou. Partimos em silêncio. A boa filha e o funcionário comedor de putas sorridente.
3 Comments:
Ainda bem que hoje vc acordou com vontade de escrever: adorei o texto!
Adorei também! Como sempre, aliás.
Boneca,
Eu tb ADOREI esse texto - só prá variar... Um beijinho,
Eu
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