Desesperança
Há 20 anos atrás o Rio era um lugar perigoso. Uma vez, quando estava no 175, um homem tirou um facão escondido dentro de um jornal dobrado e tentou assaltar as pessoas. O motorista pisou no freio, o homem caiu e colocaram ele para fora. Foi um susto.
Há 15 anos atrás o Rio era perigoso. Um dia, dessa vez no 523, um pivete arrancou o meu cordão de ouro. Eu chorei e ele me devolveu. Depois desceu do ônibus resmungando. Foi um susto.
Há 10 anos atrás o Rio era perigoso. Um dia, no carro, com a janela aberta e o sinal fechado, um menino de rua, com a mão escondida debaixo da camisa como se tivesse uma arma, mandou eu passar o rádio. Era um daqueles toca-fitas de bandeja. O motorista do carro ao lado mandou eu fechar a janela, mas o garoto segurava o vidro e o vidro não subia. O motorista do carro ao lado desceu, o garoto correu e eu levei uma bronca: “Eu não falei que era pra fechar o vidro!” Não deu nem tempo de responder que eu tentei porque ele já tinha ido embora. Foi um susto.
De dez anos para cá, as coisas pioraram e muito. O Rio não é mais perigoso. O Rio não é mais violento. Infelizmente, não existe palavra assustadora o suficiente para adjetivar esta cidade, que eu considero minha.
Há cerca de um mês atrás, uma criança foi arrastada por sete quilômetros e esfolada até morrer. A mãe e a irmã assistiram sem poder fazer nada. Ficamos chocados. Desconsolados. Apareceu até na novela. Mas e daí?
Sabe quantas pessoas morreram vítimas da violência no estado do Rio de Janeiro desde a tragédia do João Hélio?
245 pessoas.
245 pessoas já morreram desde a última vez em que ficamos indignados, incluindo uma menina de 2 anos, baleada na cabeça um dia desses.
Parece que foi ontem que aquele menino morreu. E foi. Ainda assim a violência é tamanha que mais de duzentas pessoas foram assassinadas.
E a culpa é minha. E sua.
O Rio não ficou assim de um dia para o outro. Foi piorando susto após susto, drama após drama. E nós aceitamos. Aceitamos os ladrõezinhos de ônibus, os pivetes de rua, os arrastões, as chacinas, as balas perdidas, o ônibus 174, as guerras do tráfico, a morte do João Hélio e todas as outras que se seguiram. De crianças e idosos, de inocentes e culpados, de policiais e de bandidos. Não fizemos nada para mudar coisa nenhuma. E o que é mais assustador: não temos a mais vaga idéia do que poderíamos ter feito ou de que raios ainda podemos fazer.
O Rio Body Count, que literalmente conta as vítimas da violência no Rio (www.riobodycount.com.br, para quem não conhece) transformou em números reais o que antes era só uma sensação de quem acorda de um pesadelo.
A violência descontrolada, a falta de noção do que é certo ou errado, a apatia dos cidadãos indignados e a incompetência dos órgãos responsáveis não fazem parte de um sonho ruim. Assistimos a tudo bem acordados e não fizemos nada. Ou pelo menos, não fizemos o suficiente.
O Rio, hoje, não merece a beleza que tem. E a gente, esse tempo todo, não merecia ver o Cristo Redentor de braços abertos sobre a Guanabara toda vez que virava a cara para tudo de ruim que estava acontecendo.
2 Comments:
Olá, li um texto seu que está no mês de agosto... eu pesquisava no google sobre Flamenco. Gostaria de saber em que obra ou entrevista você encontrou a citação de Clarice Lispector...
um abraço,
Bárbara
eu tenho vergonha. muita vergonha. hoje cedo saí do rio de avião e vi o cristo, vi o pão de açúcar. vi a praia de ipanema, o morro dois irmãos. vi tudo que faz aquela cidade linda numa espetacular manhã de sol de segunda-feira. mas eu não vi solução. não vi saída para o momento que vivemos, e morremos, na mira de violência. e aquilo tudo me deu um aperto, uma tristeza tão grande que nem aquela beleza toda fez passar. o Rio é lindo APESAR de quem mora nele. um balneário que resiste. APESAR do que acontece nele. e hoje virou uma cidade que não merece, não merece ser linda, não merece o direito de celebrar um carnaval enauanto enterra tantas vítimas de uma violência absurda. juro que queria saber o que fazer. estão matando a minha cidade. estão destruindo o meu país. estão dizimando o meu povo. e ninguém faz nada. que saudade dos pivetes da minha adolescência...
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