História 2
Para quem pega transporte público cheio depois do trabalho, uma carona de um colega no fim do dia é quase tão bom quanto ganhar na loteria. Por isso, na primeira vez que Alberto ofereceu, Maria Cláudia abriu seu maior sorriso. E lá foram de conversa fiada nas intermináveis horas de engarrafamento. Foi assim um dia, outro dia, e meio que sem querer ficavam se esperando no fim do expediente. Se ele ficava preso a espera de uma ligação, ela aproveitava para revisar os relatórios de vendas. Se ela precisava de mais quinze minutos para imprimir as cópias da ata da reunião de amanhã, ele dizia a si mesmo que ainda faltava ler uns e-mails.
Desciam sempre no elevador falando do trânsito, que hoje estava ainda pior por conta de um acidente na Linha Amarela. Nem percebiam, debaixo daquele mau humor padrão que devemos sentir quando sabemos que o trânsito vai mal, o prazer que lhes proporcionavam os acidentes, tanto os da Linha Amarela como os do Túnel Rebouças.
Quanto mais tempo passavam no Gol Gti 98 prateado de Alberto, mais se conheciam. Quanto mais se conheciam, mais queriam se conhecer. Há alguns meses, antes de começarem a dividir o espaço exíguo do automóvel, Maria Cláudia não sabia que Alberto comia uma omelete de queijo quase toda noite; que uma vez por semana almoçava com a irmã que apanhava do marido; que tinha operado o joelho esquerdo, mas sentia dores no direito; e que puxava um pouco de baba toda vez que ria, emitindo um barulhinho engraçado que fazia cócegas nos seus ouvidos.
Nem Alberto sabia que Maria Cláudia tinha uma irmã gémea chamada Maria Antônia, que já nasceu morta, mas com quem ela conversava todas as noites; que era viciada em leite condensado direto na lata, com dois furos (um para beber, outro para entrar o ar e facilitar o processo); que até então seu relacionamento mais longo fora com um homem vinte anos mais velho e casado; e que tinha o seio esquerdo ligeiramente maior do que o direito.
Não era raro Maria Cláudia se espantar porque já haviam chegado em sua casa, depois de rápidos 78 minutos no engarrafamento. Nem Alberto se sentir desconfortavelmente sozinho nos 7 minutos dali até a sua casa.
É fácil para nós, que escrevemos e lemos, dizer que eles estavam apaixonados. Mas para os protagonistas em questão levou um bocado de tempo até se darem conta do que se passava naquele ar parado de carro-na-hora-de-pico-em-avenida-larga-de-cidade-grande, rindo quando gostavam da mesma música, chorando quando a mãe dele faleceu ou em silêncio quando acharam que ela perderia o emprego.
Um dia, num impulso que não era muito dela, Maria Cláudia convidou Alberto para subir. Ela não estava com vontade de ver novela e, ainda por cima, tinha ovos e queijo em casa e adoraria comer uma omelete.
O excesso de espaço da casa fez com que se sentissem a quilômetros de distância um do outro. Sentiram saudades de quando o que os separava era só o freio de mão. Estavam exageradamente desajeitados. Ela chegou até a quebrar um copo. Comeram a omelete numa conversa que não fluía, cheia de monossílabos e pausas que não se encaixavam no assunto.
Lavaram a louça.
Ficaram quietos.
E se beijaram, se beijaram, se beijaram, se beijaram tanto, que tinham o vermelho dos lábios quase chegando ao nariz. Ela tirou a blusa. Ele colocou a mão no seu peito esquerdo, o maior. Ele tirou a blusa e sentiu as mãos na barriga, ainda geladas da água da louça. Riram à vontade, aliviados com a volta da intimidade desaparecida. Rolaram em pé, alternando quem ficava de costas para a parede e quem tirava mais um pouco da roupa de quem. Fizeram tudo o que o leitor imagina e o fizeram algumas vezes.
Já estava tarde, ou melhor cedo, e ele precisava ir. Ela precisava ficar, afinal ela morava ali. Conversa de bobos, bêbados de sacanagens e putarias, que nesse estado, nunca tem muito o que falar. Mais um beijo rápido e até amanhã. Entrou no carro ainda sentindo o suor que não era dele na pele. Lambeu o braço para sentir outra vez o gosto dela. Engatou a ré e saiu da vaga bocejando, sem ver o carro que fazia a curva a 130km/h.
...
Quando o caixão terminou de descer, o ar cheirava a flores e tristeza. A família em prantos, desconsolada, e os amigos engolindo seco, com uma certa culpa por ainda estarem vivos.
Maria Cláudia reconheceu a irmã de Alberto - a mesma sobrancelha e o mesmo nariz -, de braços dados com um homem. Abraçou a mulher dizendo “sinto muito” e deu um murro com toda a sua força (e a de mais três) no queixo do marido violento. Ignorando a mão que latejava e a covardia do caçador que experimenta ser caça, virou as costas para os ahs e ohs e voltou para casa. Tomou um banho, colocou a roupa para lavar e fez omelete de queijo para três. Comia e ria enquanto contava para Maria Antônia e Alberto o ocorrido no cemitério mais cedo. Era mesmo uma pena eles não terem estado lá.
3 Comments:
Sensacional, Aláinê.
Posso indicar para uns amigos daqui?
Você consegue dar umas porradas tão violentas com um tom extremamente meigo. Vou piorar a metáfora: você faz omeletes sem quebrar os ovos.
Vi um comentário seu no Coisas que não saem no banho. Fiquei curiosa, vim dar uma olhada. E amei! Já tô lendo o arquivo. E já linkei lá no meu blogue.
nunca tinha lido seu blog,e to adorando!
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