Hoje eu acordei com vontade de escrever

Thursday, August 02, 2007

Carteado

Estava lá o rei de copas, majestoso, a espera da sua dama. No começo nem deu pelo tempo a passar, de bate papo com o valete e o rei de paus. Conversa de homens, exageradas histórias de algumas canastras sujas que haviam feito no passado.

Algumas rodadas depois chega a dama. Não a dele, a de paus. Uma morena bonita que levou de rastro os dois companheiros para a mesa. Um às de espadas passou por ali, mas não encontrou nada que o fizesse ficar e foi embora sem nem pestanejar. Os ases são assim, aventureiros. Sabem o valor que têm, reconhecem a sua maleabilidade e ainda assim rodam para lá e para cá, com a certeza de que no momento certo vão decidir o jogo. Deve ser bom ter tanta auto-confiança.

Umas poucas cartas baixas tentavam se arranjar umas com as outras, mas um rei não pode se misturar. Uma das muitas tristezas de pertencer à família real. Mas não se deixou abalar. Pelo menos até ela chegar. Parou de respirar uns instantes quando viu a pele branca que gritava sob o vestido vermelho. Nem por um segundo pensou ser a sua dama. Não confundiria nem a sombra do seu amor platônico, seu objeto do desejo inalcançável desde que se lembrava de si mesmo. Declararia uma guerra para ficar com ela. Mas sabia ser em vão. A dama de ouros não era ainda dama e já arrastava uma carruagem pelo herdeiro do mesmo naipe, um garoto sem graça e afeminado. Doía seu coração vê-la sempre assim, passeando pelo lixo, rodando de mão em mão, à procura daquele rei que – só ela não percebia – era muito mais de valetes do que de damas. Nunca chegou a se declarar. Quase o fez, pouco antes de ser coroado. Mas depois de umas históricas bebedeiras e umas tantas figuras de bobo, decidiu fazer as pazes com o seu destino e aceitar o que era seu.

Deixou-se ser guiado pela sua dama e encontrou o caminho para a felicidade tranquila que os reis merecem. Ao pensar no seu rosto bolachudo e no seu abraço farto, sentiu ainda mais a sua falta e ansiou que fosse a dama de copas a próxima no monte. Não era. Apenas ele e mais um par de cartas desencontradas e sem futuro ainda ficaram ali. O peso da inutilidade é ainda maior para um rei. Reparou no jogo adversário, para se distrair. Sentiu um punhal passear pelo seu coração. Três cartas descem em câmera lenta. Era a sua dama, que sorria à vontade entre o valete de copas e o coringão, num jogo sujo do qual ele não fazia parte e não parecia fazer falta.

- Dama, sua vagabunda!, gritou com a voz trêmula. Era uma carta experiente. Sabia que, por causa daquela traição estava morto. Já não servia nem como lixo.

9 Comments:

Blogger Dr Chris said...

Nem sei como cheguei aqui (mas não pense que passei de mão em mão).
Muito legais teus textos.
Não descarte uma possível visita ao meu blog. Saluto!

11:05 AM  
Blogger Aline said...

Olá, Adriano. Obrigada. O seu link não vai para o seu blog. Deixe aqui o endereço e com certeza eu passo por lá.

1:13 AM  
Anonymous Anonymous said...

Boneca,

Adorei esse texto!!! Surreal e divertido... Um beijinho,

Eu

12:26 PM  
Blogger Cláudia said...

PERFEITO! ADOREI!

2:32 PM  
Anonymous Anonymous said...

De fato, uma majestosa surrealeza. Excelente texto!

1:52 AM  
Blogger zeluiz said...

Oi, Aline. Tambem curti seu blog. Voltarei mais vezes. Se topar, podemos colocar links de ca pra lá e de lá pra cá.

8:30 AM  
Blogger Rodolfo Barreto said...

Anda, vai lá. Você tem que cuspir ;)

8:11 AM  
Blogger Rodolfo Barreto said...

Aláinê,

Cuspir = descartar uma carta das mãos no jogo de buraco.

12:10 PM  
Blogger Nana said...

Adoro seu blog! E esse texto é um dos melhores, lindo!

10:34 AM  

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