Hoje eu acordei com vontade de escrever

Friday, September 22, 2006

Despedida do Verão

O sol não me engana. Já não é sinonimo de calor. Guardo as sandálias no armário. Adeus Havaianas, vestidinho tomara-que-caia, biquíni lindo que veio lá do Brasil. Sinto o cheiro das castanhas assadas na rua e me lembro que a partir de agora não tenho pés, tenho meias coloridas. Uma das diferenças de morar num país com Inverno é a atenção e o esforço dispensada às meias. Roxas, listradas, de bolinhas, com 20% de lã, com 100% de lã, que retém muito calor e muita umidade, que retém pouco calor, mas seca rápido. Uma variedade sem fim.

E por falar em secar rápido, as toalhas no Inverno não sabem o que é isto. Imagina se, de um banho para outro, elas estarão agradavelmente prontas para serem usadas de novo. Só se você não tomar banho todo dia. O que, pensando bem, pode explicar muita coisa. Mas eu, que culturalmente adquiri esta mania do banho diário, posso começar a preparar meu estado de espírito para a toalha úmida e gelada. Posso preparar meu nariz para o vento frio que corta a Rua do Sol ao Rato, um corredor de prédios antigos onde o sol demora a acordar. Posso preparar meu humor para chegar em casa e não ter vontade de tirar o casaco, porque nem lá dentro o Inverno passa. Posso tratar de desencavar forças para brigar com a preguiça que parece ter mais músculos que o Schawznegger nos anos 80.

Mas estou sendo injusta com o frio. É bom quando a salamandra está acesa e a sala fica com aquela luz de cabana romântica. É divertido tentar convencer meu cão a não ficar tão perto dela. Coitado, no Inverno nem tem vontade de ir à varanda ver a vida e veste uma roupinha de gola alta com gosto, de tanto frio que passa. É gostoso entrar debaixo do edredon e esquentar minhas mãos geladas nas costas do meu marido. (Não sei bem porque, mas ele não gosta.)

As pessoas são mais elegantes com sobretudos, gorros e cachecóis. Os amigos aparecem mais na sua casa. O Ikea vende mantas lindas, coloridas e baratinhas, que custam menos ainda se você pensar que nos próximos meses serão suas melhores amigas. Os vinhos, os queijos, os chocolates, praticamente tudo que pode ser classificado como comida intensifica o seu gosto. No Inverno passado até aprendi a gostar de chá, que para mim sempre esteve mais para água quente com um sabor distante de nada.

Deve ser impossível termos neve de novo. Ano passado aconteceu, mas depois de uma ausência de 50 anos, o que não deixa muitas esperanças para 2007. Adoraria ver Paris vestida de branco. Acho que sinto pela neve a atracão que os gringos sentem pela nossa areia fina e clara. É como se fossemos transferidos para outra dimensão. Uma que só vimos em fotos e filmes. Mas a neve não é a única benção que a natureza guarda para o inverno. Tem a rua que fica dourada com as folhas que caem. Tem o céu azul mais azul do que nunca.

Pensando bem, estou ficando otimista demais. Devo estar olhando para o inverno com aquele olhar de quem já está longe faz tempo. A verdade é que em dias demais, São Pedro acorda irritado com a gente e manda a chuva para complicar tudo. As calçadas de pedra portuguesa (que só são chamadas de pedra portuguesa no Brasil) escorregam mais que sabão e temos pouca ou nenhuma vontade de colocar os pés na rua.

Tchau, Verão. Olá, Outono. E que venha o Inverno.
Portugal pode não estar preparado para você, mas eu estou.

Wednesday, September 13, 2006

O jornal de hoje

Desculpa mas eu não entendo. Não entendo como um homem pode se enfiar à força dentro de uma mulher, rasgando a sua dignidade e suas simples esperanças de ter uma vida boa, para gozar o mesmo gozo de quando usa as próprias mãos debaixo do chuveiro.

Eu não entendo como um sujeito ainda tenta interpretar o papel de esperança quando a merda já foi parar no ventilador faz tempo, respingando na cara de todo mundo. Entendo menos ainda como é que 75% dos brasileiros não conseguem sequer sentir o cheiro dessa merda toda e continuam a o admirar como pessoa. Definitivamente, eu não entendo essa gente nojenta que rouba mais do que precisa, por ossos do ofício de trabalhar na politica.

Também não entendo essa vingança absurda contra as arraias. Será que alguém pensa que assim elas vão aprender a lição e não sair por aí ferroando apresentadores de TV que se acham domadores da natureza?

Não, eu não entendo a polícia que se vende barato para bandidos com pinta de empresário que ligam de celulares para seus advogados de dentro do camburão. Eu não entendo o superávit de uns e o deficit de outros. Meu Deus, eu não entendo como alguém se explode pelos ares convencido que parte com a dignidade de quem contribui para a salvação, quando não faz mais do que transformar 22 pobres almas em pedacinhos de carne.

Eu não entendo como meus olhos caminham por notícias incompreensíveis com a mesma emoção de quem lê gibi velho ou bula de remédio, só para passar o tempo. Não choro, não dou gargalhadas histéricas de nervoso, não vou correndo para o banheiro vomitar. Um barulhinho de língua estalada entre os dentes, um abano morno de cabeça (quando muito) e viro a página. Eu não entendo quando fiquei burra e anestesiada. Talvez esteja só me defendendo, como fez a arraia. Mas que tipo de defesa é esta, se nada me protege de ser uma das vítimas do dia, no jornal instantaneamente esquecido de depois de amanhã?

Monday, September 11, 2006

Vida

Saindo daqui é fácil. Segue esta rua e vira à direita, na casa vermelha com uma mangueira na frente. Quando vir um parquinho com um balanço, um escorrega e uma gangorra que te acerta bem na testa, é só contornar à direita para chegar no hospital e levar 6 pontos. Passa a escola primária e o menino que você batia porque gostava tanto dele que não sabia o que fazer. Depois que passar a bicicleta, as bonecas e uma cadela vira-lata chamada Tininha, você vai ver o fim da infância. Não tem como errar. Rapidinho você chega lá. À sua direita fica a adolescência. Continua por ali que você descobre o seu corpo, a sua melhor amiga e que seus pais não são perfeitos. Pouco depois vem o primeiro namorado. Passa um pé na bunda, outro pé na bunda e você vai ver uma faculdade grande. Quatro anos depois, vire à esquerda, à esquerda de novo e na sua frente vai estar o seu primeiro emprego. Dois empregos depois, quebre a direita. Passe umas três ou quatro férias na praia e à direita vai encontrar o seu casamento. É só procurar uma igrejinha branca com um casal feliz da vida na frente. Se passar pelo primeiro namorado de novo é porque você errou. Um ou dois anos depois, você chega numa maternidade. Ali é só virar à direita e passar algumas noites em claro. Vai devagar porque esse pedaço é perigoso. Algumas brigas feias e você chega no divórcio. Vai parecer que rua acabou, mas é só impressão. Dá pra virar numa ruazinha escondida à direita. Depois contorna o fato de ser mãe "solteira" e vai chegar no amor da sua vida. Se virar à direita, você tem outro filho com ele. Cruza uma dúzia de grandes alegrias, meia dúzia de grandes tristezas e um monte de dias onde você só vive, sem se dar conta. Três netos depois, você vai chegar numa bifurcação. Ali você vai ser obrigada a ir para a direita. Quem parecia já fazer parte de você vai ter que virar à esquerda. Passado o susto, você continua em frente. Não tem outra opção. Passa um bisneto, mais algumas despedidas, e no terceiro sinal você entra à direita, numa rua sem saída. Se tiver um dia claro, vai dar para ver como você foi feliz.

Balanço de um ano, um mês e onze dias

31 de Julho de 2005. Chego em Lisboa com meu marido, quatro malas e a dúvida se estou fazendo a coisa certa.

As quatro malas se abriram e foram se transformando na minha vida.

Nesse meio tempo, descobri que a coisa certa não existe. O lado bom é que coisa errada também não.

Comi menos Pastéis de Belém do que esperava comer.

Percebi que já deveria ter separado a minha vida pessoal da minha vida profissional há mais tempo.

Entendi que a minha casa só é a minha casa com o barulhinho das patas do meu cão batendo no chão.

Me senti culpada por deixar minha mãe sozinha no Natal.

E no Ano Novo.

Conheci o inverno. Passei meses sem ver direito o meu pé, sempre enfiado numa meia.

Não conheci o João.

Tive a sorte de ver a neve cair em Lisboa depois de mais de 50 anos.

Consigo andar na rua e não sentir medo. Mesmo que seja de noite. Mesmo que esteja sozinha.

Descobri que encanador se chama canalizador, e que é mais difícil fazer um ir até a sua casa consertar o autoclismo da retrete (descarga da privada) do que encontrar um taxista que não fique cheio de graça no momento em que percebe que você é brasileira.

Comecei a colocar um “c” no meio de palavras como acção e contacto mais instintivamente do que eu imaginava. Mas sinto saudades do gerúndio e me recuso a atender o telefone falando “Tô”. Adoro quando alguém pede para fazer festinhas no Lolo, diz que alguma coisa é tão querida ou pergunta para mim se a menina vai querer mais alguma coisa.

Fiz 30 anos. Mas fiz 30 anos em Londres.

Nunca fui tão dona-de-casa e a minha casa continua uma bagunça.

Fui a Mérida.

Fui à Copa do Mundo.

Fui para o meio da montanha branquinha com o meu trenó e caí de cara na neve. Várias vezes.

Passei uma noite numa torre do século X e outras numa casa-barco no canal preferido de Rembrandt.

Andei por lugares tão perfeitos que me sentia dentro do cenário de um filme.

Escolhi a minha cidade favorita, sendo injusta com muitas outras.

Descobri que viajar vicia. Estive em nove países diferentes. Visitei umas quarenta cidades. Ainda assim, não passa um dia em que não pense em quanto do mundo ainda tenho para conhecer.

Criei este blog.

Estou mais calma do que jamais fui.

Alguns dias, me sinto mais sozinha do que jamais me senti.

Descobri que a distância não afasta tanto as pessoas quanto se pode imaginar. Mas tenho medo de que o tempo afaste.

Entendi que preciso aprender a esperar.

Percebi que as pessoas longe de casa são mais generosas com o seu carinho e a sua atenção.

Cheguei à conclusão que viver em outro país é morar na casa dos outros. Eles podem até dizer para você se sentir à vontade. Mas você é sempre visita e, uma hora ou outra, acaba incomodando.